A primeira vez que ouvi essa afirmação foi na Acres USA em 2018, o que me obrigou a fazer uma rápida visita ao dicionário para conferir o termo e descobrir que: Senciente – adj., do latim Sentiens, capaz de sentir ou perceber através dos sentidos.
Senciência é a capacidade dos seres de sentir sensações e sentimentos de forma consciente. Em outras palavras, é a capacidade de ter percepções conscientes do que lhe acontece e do que o rodeia.
Essa afirmação provocou em mim uma enorme vontade de conhecer melhor as plantas e saber até que ponto isso era realmente verdade. Me lembrei do célebre best seller da década de 70, “A Vida Secreta das Plantas “ ( 1 ) da época em que ainda estudava na Escola Nacional de Agronomia, a saudosa ENA.
Os maiores cientistas dessa área, hoje em dia, reconhecem que o livro de Tompkins & Bird foi baseado em “ciência ruim” e alguns dos experimentos relatados jamais puderam ser confirmados, e sob esse ponto de vista, o livro, acabou fazendo mais mal do que bem para a jovem ciência da Neurobiologia Vegetal, a ponto de Chamovitz rotulá-lo de “cientificamente anêmico “ ( 8 ).
Mas logo pude ver que esse assunto já ocupava o pensamento de brilhantes botânicos há muito tempo, como Charles Darwin, que acabou de vez com a ideia de que as plantas eram imóveis, ao publicar o livro The Power of Movement in Plants em 1880 ( 2 ). Antes disso o célebre botânico Linnaeus, em 1755, escrevia o livro Somnus plantarum em Upsalla na Suécia, sobre o sono das plantas.
Hoje em dia esse assunto é estudado de forma bem mais séria e já existem até departamentos de neurobiologia vegetal como por exemplo o Laboratório Internacional de Neurobiologia Vegetal da Universidade de Florença na Itália, sob a direção do Fisiologista Vegetal Dr Stefano Mancuso, uma autoridade mundial nesse novo ramo da ciência, muito embora vários outros cientistas ainda se recusem a aceitar que o termo “neuron”, que advém de “neurônio”, seja apropriado para as plantas em virtude das mesmas serem desprovidas desse tipo de célula própria do sistema nervoso dos animais e do homem.
Mancuso afirma que essa “fetichização” pelos neurônios, assim como a nossa tendência a igualar comportamento com mobilidade, nos impede de ver as plantas como elas realmente são e o que elas realmente podem fazer ( 7 ).
Entretanto, a tentativa de comparação das plantas com o ser humano ainda persiste até os dias de hoje, embora Chamovitz nos alerte para o fato de que plantas conseguem ver sem ter olhos, resolvem problemas sem terem cérebro, ouvem sem ouvidos e enxergam sem ter olhos ( 8 ).
Na visão de Chamovitz, Mancuso e Pollan, o funcionamento dos sentidos das plantas, que são controlados pelos cérebros que estão localizados em cada ponta de raiz, pode ser melhor entendido sob o conceito do fenômeno, ainda pouco entendido, que em inglês é chamado de “murmurations” para as aves e “school of fish “ para os peixes, onde cada indivíduo age como que estivesse sob o comando de alguma fonte externa a eles, só que no caso das plantas, seriam as células agindo em uníssono sob um mesmo comando.
Video 1. Murmurations.
Video 2. School of Fishes.
O fato das plantas terem que viver ancoradas ao solo fez com que desenvolvessem sistemas descentralizados, modulares, reiterados e redundantes e é talvez o único ser vivo que mesmo perdendo 90% do seu peso corporal ainda teria capacidade de se recuperar e continuar vivendo.
Tudo isso nos faz querer analisar o porque da maioria das pessoas considerarem as plantas como seres inferiores e limitados. Mesmo sabendo que estamos atravessando talvez o pior momento da história da agricultura humana, ao priorizarmos o AgroNegócio ao invés da AgriCultura, podemos concluir que muitos dos pontos levantados hoje são os mesmos pontos levantados há séculos atrás e repousam não em evidências científicas mas sim em sentimentos e em conceitos culturais pré-concebidos (preconceitos) que existem há milhares de anos.
Embora uma observação casual pudesse sugerir que o nível de complexidade das plantas seria de um baixo nível, a ideia de que as plantas são organismos sencientes que podem se comunicar, ter uma vida social e resolver problemas de forma simples, usando estratégias elegantes e de que elas são em uma única palavra, inteligentes, frequentemente é levantada. Desde os filósofos gregos Demócrito e Platão, de Lineu a Darwin, de Fechner a Bose (para mencionar apenas os mais conhecidos) que a crença de que as plantas teriam habilidades bem mais complexas, foi abraçada.
Mais recentemente até um dos meus favoritos botânicos e microbiologistas, o austríaco Raoul Francé, considerado um dos país da agricultura orgânica, também escreveu sobre esse assunto ( 5 ).
Toda essa questão nos faz enxergar o antropocentrismo de forma escancarada e em toda a sua plenitude. Nos faz ver toda a arrogância da espécie humana que talvez tenha, infelizmente, a sua origem na Bíblia. No livro sagrado, assim como em diversos outros livros sagrados de outras Cosmogonias, o homem é sempre o fruto supremo da criação divina.
Para complicar mais ainda as coisas, Deus pediu a Noé que levasse apenas dois exemplares (machos e fêmeas) de cada animal, para dentro da arca “para salvá-los da enchente”, de cada criatura que se move, puros e impuros.
E as plantas? Nenhuma palavra sobre elas. Na Escritura Sagrada o mundo vegetal nem sequer é considerado. Talvez a origem dessa confusão toda seja mesmo a Sagrada Escritura. Mas ela não é exclusiva do Cristianismo. Todas as religiões baseadas em Abrahão falharam implicitamente em reconhecer que as plantas são seres vivos agrupando-as com outros objetos inanimados.
A arte islâmica, por exemplo, que respeita a proibição contra representar Alah ou qualquer outra criatura viva, está ativamente engajada em retratar plantas e flores de forma tão constante que o estilo floral chega a ser emblemático naquela cultura. Sem mencionar esse fato de forma explicita, esse aspecto demonstra que as plantas, no conceito islâmico, não são criaturas vivas ou do contrário elas seriam proibidas de serem retratadas!
Pois bem, para todos esses senhores, eu tenho uma péssima notícia. As plantas não só possuem os mesmos cinco grandes sentidos, assim como os seres humanos, como também outros 15 sentidos menores que fariam qualquer humano se sentir inferiorizado em relação a elas ( 3 ).
Com relação as plantas não se moverem, sem querer usar o trabalho de Linnaeus para contestar essa hipótese, a grande dificuldade das pessoas é justamente entender o conceito de espaço-tempo que é relativo, para compreender que, sob o ponto de vista das plantas, nós não passamos de seres arrogantes, extremamente velozes e, talvez por conta disso mesmo, sofremos de falta de cuidado, falta de atenção e somos até meio desmiolados.
Vídeo 3. Feijão crescendo e se desenvolvendo – Time Lapse vídeo.
Quando sobrevoamos uma rodovia a bordo de um jato temos a exata impressão que os carros lá embaixo não se movem. Isso porque tanto o espaço quanto o tempo são conceitos relativos. A única coisa absoluta é a velocidade da luz e foi aí que Einstein começou a dar um nó na cabeça das pessoas quando, aos 50 anos de idade, enunciou a Teoria da Relatividade. Muita gente ainda não entendeu isso até os dias de hoje.
Plantas desenvolveram estratégias muito inteligentes de se locomover e de se propagar, e com isso fazer o que todo ser vivente faz, espalhar e perpetuar o seu DNA. Imaginem, por exemplo, a Maçã ( Malus domestica ) originária do Cazaquistão e hoje presente no mundo todo. Da mesma forma a Batata ( Solanum tuberosum ) que saiu do Andes para conquistar o mundo ou o Milho ( Zea mays ), a Soja ( Glycine max ), a Tulipa ( Tulipa sp. ) ou a Maconha ( Cannabis sativa e C. indica ) ( 7 ). Todos são exemplos de estratégias de domínios territorial, bem sucedidos.
O domínio das plantas sobre os homens e os animais é inegável quando se sabe que 99,7% da biomassa da Terra é composta pelas plantas e que homens e animais perfazem apenas 0,3%.
Por meio do alimento, da beleza, do aroma ou da intoxicação as plantas garantem que elas tenham um verdadeiro exército de escravos humanos e animais a sua disposição.
São elas que tornam possível a vida na Terra por serem os únicos seres capazes de captar a energia do Sol e transformá-la em matéria. E, embora seja verdade que nós obrigatoriamente precisamos delas para viver, e que a maioria delas poderiam viver sem nós, o fato é que em algumas espécies, como as mencionadas acima, foi desenvolvido um típico caso de mutualismo entre homens e plantas. Ambas as espécies são beneficiadas pela convivência.
Ao domesticarmos certas espécies, de certa forma estabelecemos uma relação de dupla troca que caracteriza uma relação de dependência mutualística.
Mancuso observou que “ se nós pudéssemos entender as plantas nos seus próprios termos, seria como entrar em contato com uma civilização alienígena “.
Eu creio que é chegada a hora de começarmos a tratar as plantas com o respeito que elas merecem por serem seres dotados de senciência. E usar a nossa inteligência para projetar sistemas de produção agropecuários que sejam realmente capazes de alimentar a população do globo sem termos que recorrer a produtos químicos solúveis poluentes e a substancias tóxicas e nem nos rendermos ao terrorismo das empresas de insumos agrícolas e de seus cientistas de aluguel.
José Luiz M Garcia
Fevereiro de 2020.
Referência
- Tompkins, Peter & C, Bird (1974) A Vida Secreta das Plantas, Circulo do Livro, São Paulo, 377 pgs.
- Darwin, C & F. Darwin ( 1880 ) The Power of Movements in Plants, London, John Murray, Reprint, Cambridge, UK, Cambridge University Press, 2009.
- Mancuso, Stefano & Alessandra Viola ( 2015) Brilliant Green, The Surprising History and Science of Plant Intelligence, Island Press, Washington, USA, 173 pgs.
- Mancuso, Stefano ( 2017 ) The Revolutionary Genius of Plants, A new Understanding of Plant Intelligence and Behaviour, Atria Books, New York, N.Y, 225 pgs.
- Francé, R.H. ( 1911 ) Germs of Mind in Plants, Charles H Kerr & Co, Chicago, 151 pgs.
- Pollan, Michael ( 2002 ) The Botany of Desire, A Plant’s-Eye View of the World, Random House Trade, 271 pgs.
- Pollan, Michael ( 2013 ) The Intelligent Plant, The New Yorker, https://www.newyorker.com/magazine/2013/12/23/the-intelligent-plant
- Chamovitz, Daniel ( 2012 ) What a Plant Knows, Scientific American/Farrar,Straus & Giroux, New York, 177 pgs.
A Antroposofia traça um paralelismo entre o ser humano e as planta. É muito interessante.
Muito relevante esse seu artigo. Estamos evoluindo!
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Gostei demais, precisamos abrir nossa consciência ,vou compartihar com meus netos.
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Nossa prepotência nos deixa cegos, quando observamos o tempo nos colocando como Superiores por nao entender ou compreender. Nossa insignificância perante o todo e o Universo. Tendo como o Tempo apenas o nosso… Bela reflexão Dr Vinagre
Temos ainda muito que descobrir e traduzir, mas a nossa boa vontade certamente tratá benefícios. Novas perspectivas e possibilidades de entender o Real “Valor” da Vida
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Agradeço
E não podemos nos esquecer que as plantas gostariam de estar participando do nosso
esforço de produção de alimentos de uma melhor qualidade nutricional.
Que tal começar a tratar as plantas com elas realmente são, merecem e precisam ao invés de
tratá-las como simples produtoras de commodities ?
Eu se fosse planta com certeza me sentiria ofendido se me tratassem como produtora de commodity.
Plantas produzem alimento. Produzem Nutrição, as vezes fibra e algumas vezes prazer.
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